Quando a cegonha chega carregando muitos papéis

Ontem, inverti a ordem dos posts que havia programado para o início da semana por conta da feliz coincidência com o Dia Nacional da Adoção. Aquele texto da advogada Anna Luiza Pereira de Sousa era, na verdade, um desdobramento deste que segue aqui sobre como a maternidade e a paternidade vêm, por vezes, acompanhada de uma luta nos tribunais:

Quando a cegonha chega carregando muitos papéis

Nem sempre a maternidade vem com a barriga. Isso todo mundo sabe. O afeto cria e define vínculos e famílias. O que nem todo mundo se dá conta é que, nesses casos, o Direito precisa acompanhar esses laços. E com o Direito… papéis! Muitos papéis!

Era uma noite de sexta-feira quando o meu celular tocou. Uma conhecida pedia que eu fosse até uma maternidade próxima. Um casal me aguardava. Gêmeos: um menino e uma menina. Aí vocês devem estar se perguntando o que havia de errado para necessitar a presença de uma advogada. Uma barriga solidária tornara o sonho do casal realidade.

O procedimento havia sido feito com um renomado especialista na área de fertilidade. Tudo correra dentro dos parâmetros legais exigidos pelo Conselho Federal de Medicina. Porém, havia um detalhe: a maternidade se negava a entregar a DNV (Declaração de Nascido Vivo) das crianças em nome da mãe biológica. A alegação era de que as normas para expedição do documento obrigavam que o nome da DNV para posterior registro fosse feito em nome da parturiente.

A mãe das crianças estava inconformada. Depois de tanta luta, como não poder ser mãe? O caminho ali era único. Uma ação judicial os aguardava. Como dizer a essa mãe que na certidão de nascimento de seus filhos não seria possível constar seu nome? Ou que para o plano de saúde da família seus filhos teriam de esperar uma decisão judicial? Ou, ainda, que, enquanto não houvesse tal decisão, uma viagem não seria possível?

Esse caso serve de exemplo de reflexão entre vários outros com os quais venho me deparando ao longo da carreira, atuando em Direito de Família. Famílias que se formam, famílias que se desintegram, mães que nascem pela adoção, pais que viram mães, mães que são escolhidas pelos seus filhos, filhos com dois pais ou duas mães… Assim é o panorama do Direito de Família.

Lidamos, na maior parte das vezes, com a dor envolvendo sentimentos tão nobres. Uma emoção em cada caso que precisa de uma cura que venha da Justiça. E a Justiça, como sabemos, em passos tão lentos, não acompanha a velocidade das relações, não só por sua morosidade, como pelo árduo processo legislativo ao qual estamos submetidos para que um Direito seja reconhecido. Claro que o dever do Estado também é de proteção, mas será que muitos dos caminhos não poderiam ser mais simples?

A maternidade e a paternidade vêm, por vezes, acompanhada de uma luta nos tribunais. Além do enxoval, a bagagem vem recheada de papéis, e por trás disso tudo advogados, juízes, promotores, defensores públicos… Esta semana o jornal O Globo retratou um caso semelhante ao narrado acima. A mãe biológica recorreu à Justiça antes do nascimento do filho, oriundo de barriga solidária, para que sua maternidade fosse reconhecida. (http://oglobo.globo.com/sociedade/um-nenem-duas-maes-muitos-documentos-16105157).

O processo para adoção, por exemplo, é outra árdua jornada.  Uma longa caminhada, começando com a habilitação para a adoção. Leva tempo. Uma vez habilitado, o interessado tem de aguardar uma criança apta para a adoção, dentro do perfil que se candidatou a receber. Em seguida, vem a guarda provisória. E, por fim, a espera pela guarda definitiva.

Houve uma época, e não faz muito tempo, em que as mães por adoção não tinham direito sequer à licença de seus trabalhos. Foi justamente nessa época que Carmen Lúcia Carvalho (na foto, com os filhos ainda pequenos) pôde ver o seu sonho de mãe ser realizado:

“Tenho dois filhos muito amados! João Pedro, hoje com 21 anos de idade, e Larissa, com 19, os quais me permitiram ser mãe através de um processo de adoção iniciado há muitos anos. Tanto João Pedro quanto Larissa chegaram pra mim com poucos meses de idade. Tive o privilégio de ser mãe dos meus filhos desde muito bebês!

O amor é algo extremamente grande, incondicional… E as dificuldades para se concretizar uma adoção naquela época eram praticamente tão grandes quanto… Se eu não trabalhasse na Marinha, sendo regida na época pelo RJU (Regime Jurídico Único), eu não teria direito a licença-maternidade alguma!

Pelo RJU, tive direito a três meses de licença-adoção. Se eu tivesse tido uma gravidez, teria direito a quatro meses de licença-maternidade. Os problemas começavam aí… Quem gerava uma criança, na época tinha mais um mês de licença, considerado necessário para o restabelecimento da mãe. Para quem adotava, este tempo era reduzido. Dizia-se não ser necessário.  Só que a maioria das pessoas não se dava conta de que uma adoção vinha normalmente atrelada a crianças subnutridas ou necessitando de cuidados especiais, sendo necessário também um acompanhamento maior por parte da mãe adotiva, uma vez que esta deveria se adequar a uma nova rotina.

Além disso, havia a necessidade de tempo para conseguir toda a documentação do bebê no local da adoção. Coisas muitas vezes complicadas, necessitando a permanência de mais dias no local onde se encontrava a criança para conseguir resolver a burocracia na entrega da papelada. A guarda provisória era gerada e tinha que se retornar depois para conseguir a certidão de nascimento definitiva. Isto tudo exigia TEMPO e DISPONIBILIDADE, coisas que a LEI na época não garantia às pessoas que adotavam…

Bibliografia também era uma coisa muito difícil!! Falava-se tanto em maternidade, NADA se falava sobre adoção! Como lidar com as situações de uma adoção? Tive que aprender na prática ou procurando bibliografia no exterior… Mas fui em frente, com MUITO AMOR e FÉ em cada passo que eu dava. Hoje meus meninos estão crescidos, e eu, muito feliz em ter FILHOS tão queridos e tão amados!”

O conceito de família ampliou, o exercício da maternidade e da paternidade também. Avançamos muito no Direito de Família nos últimos 20 anos, mas ainda há muito que ser modificado e reconhecido. Atualmente, existem projetos de lei, em trâmite no Congresso, para que essas questões sejam vistas de outra forma.

O dia 15 de maio foi instituído pela ONU como o Dia Internacional das Famílias. Para todos aqueles que sonham com a chegada da cegonha, assim como a Carmen Lúcia um dia sonhou, a busca é o afastamento do conservadorismo de nossas leis. Que, num futuro próximo, livres de tabus religiosos ou preconceitos, possamos reconhecer nas relações o afeto em todas as suas formas.

Mãe de três filhos, num segundo casamento, Anna Luiza Pereira de Sousa é uma advogada que trocou o Direito Empresarial pelo de Família após um divórcio complicado com dois filhos pequenos. Com a sócia Anna Luiza Mattos, escreve artigos sobre temas contemporâneos em Direito de Família. Confiram o site www.AnnasEmFamilia.com e a fanpage Annas em Família​.

 

carmem lucia