Uma lição de vida

Em busca de outras histórias sobre maternidade e experiências de vida que nos fazem ponderar e rever preconceitos, lembrei-me da Mariana Reade, que há cerca de um ano teve uma filha linda com síndrome de down, diagnosticada apenas após o nascimento. Quando liguei para sondar a possibilidade de ela escrever algumas palavras para o Projeto Cegonha, minha amiga titubeou, entre outros motivos, por achar que a sua reação diante da notícia não havia sido exatamente a esperada pela sociedade, e que seu exemplo talvez não fosse despertar tanto interesse. Argumentei que muito pelo contrário, que sua aceitação, seu otimismo e generosidade, aliás, dela e do marido, vale ressaltar, são uma grande lição de vida. Afirmo por mim, pois as palavras a seguir ainda reverberam como um soco no meu estômago…

Vinte e quatro horas depois do parto, feliz e cansada, pensava em dormir algumas horas até a próxima mamada quando a pediatra da equipe do obstetra começou uma conversa estranha, e de tão estranha eu não entendia bem as palavras. “Pode ser uma síndrome, características e fenótipos, não saber e cariótipo, geneticista, o que às vezes parece e não é, aquilo que pode ser e tudo o que pode não ser, o mundo do talvez…” As palavras caíram feito um martelo na minha cabeça, mas logo voavam e eu não conseguia agarrá-las o suficiente para compreendê-las.

Minha bebezinha ao lado dormia linda e serena, e ainda bem que não havia ouvido nada dessa conversa estranha. Síndrome? A sós com meu marido, perguntei como de costume, quando ele se tornava meu porto seguro: “e agora”? Ele se deitou bem perto de mim e chorei horas seguidas. De medo. E se aquela síndrome, não se sabe qual, fosse degenerativa e nossa bebezinha vivesse apenas um ano? Ou, quem sabe, dois e, no máximo, três? Convicta dessa possibilidade, chorei amargamente até dormirmos juntos na cama do hospital.

Entre tantas lágrimas, me senti incapaz de escolher o nome da nossa bebê. Queríamos conhecê-la antes de optar por uma de nossas três opções. Porém, naquela hora em que tudo era indecisão, muitas possibilidades me invadiam, e dar à nossa filha o nome que ela carregaria durante toda a vida havia se tornado a missão mais difícil do mundo. Na fotografia do hospital, ela ganhou apenas um sobrenome. Pânico e um infinito medo do futuro.

No dia seguinte, pensei que depois de tantos anos de budismo e cabala eles precisavam servir para alguma coisa! Para espanto da família, pedi ao geneticista que não viesse. Eu não queria “logo confirmar que não seria nada” – como diziam à minha volta. Minha meta era primeiro aceitar que seria capaz de lidar com qualquer síndrome, e só então receber o diagnóstico.

Quando me senti pronta para ouvir o que quer que fosse, o geneticista não tinha horário, aí caí outra vez. Dr. Juan Llerena, um homem sensível e prático, ajudou: “Você pode vir agora mesmo no Instituto Fernandes Figueira?” Esquecida da dor dos pontos, fazia a mala rapidamente quando o obstetra entrou para dar a alta. Partimos com pressa com nossa filha sem nome. Em cinco minutos de observação, dr. Juan afirmou: “Sua filha tem síndrome de down”. Foi aí que tudo começou a mudar. Ela era a MINHA FILHA. A síndrome de down vinha depois. Sua maneira de falar me apaziguou. Saindo do consultório, eu e meu marido nos olhamos aliviados. A trissomia do 21 é bastante conhecida no nosso século, e um em cada 700 bebês nascem com ela. O cromossomo extra não nos pareceu muito assustador. Todos os meus medos da misteriosa doença degenerativa desapareceram.

“O que vocês precisam fazer é rever seus conceitos, mudar a mentalidade e enxergar a vida de outra maneira. Mais difícil que a síndrome de down em si é saber lidar com o preconceito das pessoas.” Nunca tive medo de preconceitos, e com essas palavras me senti pronta para a missão. Meu marido não titubeou. Ela era NOSSA FILHA e a síndrome de down era apenas uma parte dela. Ele soube 24 horas antes de mim e em nossa primeira conversa já estava sereno. Brilhante em sua generosidade incondicional, ele a aceitou imediatamente. Se eu soubesse que teria uma filha com qualquer síndrome e pudesse escolher o pai ideal, seria ele: acolhedor, corajoso e amoroso.

Após a primeira notícia, todos os amigos e familiares queriam falar conosco. Logo percebi o que eu não queria: consolo. Eu esperava PARABÉNS, como todas as mães. Recebi umas três reações de “sinto muito” e fiquei uma fera. Que ousadia! Então mandamos um e-mail positivo explicitando a mensagem clara do que esperávamos: apenas parabéns e amor. Estávamos prontos para descobrir esse novo mundo. E assim foi. Todos entenderam o recado.

É claro que – fora da nossa lista de e-mails repleta de amigos queridos e compreensivos – nos deparamos com pessoas que não foram tão generosas. E com essas, sim, me machuquei. Até hoje, quando alguém pergunta se eu não descobri o diagnóstico na gravidez, me sinto ofendida. Até hoje, quando alguém afirma que tiraria o bebê caso descobrisse que ele tem síndrome de down, me sinto ferida. É claro que respeito a decisão de cada um, mas não consigo evitar essa dor porque por mais que minha mente compreenda, meu coração se pergunta, magoado, por que alguém pode não querer receber do universo um bebê parecido com a minha Carolina tão amada. E do fundo do meu coração sinto vontade de afirmar que minha filha não é menos que ninguém. É diferente.

A deficiência intelectual trará problemas? Provavelmente. Problemas e desafios. Por enquanto os bebês de sua idade andam e falam palavras, e Carolina não. Sim, haverá desafios. Mas tenho pensado que acima da nossa forma de viver neste mundo competitivo está nossa capacidade de amar. E tenho certeza de que podemos amar todas as imperfeições e dificuldades.

Passado um ano, tenho que dizer que ser mãe de Carolina me faz plena, feliz, radiante e confiante. Cada momento em que a vejo, com sua “imperfeição” estampada nos olhos puxados, sinto um amor infinito e a certeza apaziguadora de que não temos controle nenhum nesta vida. Nossa missão me parece ser a de aprender a amar.

Quanto às minhas angústias iniciais, uma delas me faz rir! A primeira: o medo de que eu não a amaria tanto quanto a “filha perfeita” não é nada. A segunda, sobre o que será dela quando eu e meu marido não estivermos aqui neste planeta, é ainda uma assombração. Mas tem me ensinado a aceitar que só temos o presente em nossas mãos. Fazemos de tudo para que ela seja independente. Temos certeza de que ela poderá se virar totalmente sozinha? Não temos.

Esta semana, em seu primeiro dia de escola, na hora do lanche ela ganhou um biscoito inteiro e respirei fundo, pois seus colegas – menos “bebês” que ela – seguram seus próprios copos e têm dentes. Resolvi não dizer nada. Independência? Carolina comeu o biscoito inteiro pela primeira vez e ficou olhando para o copo até a professora perceber que ela não sabia segurá-lo.

Nesta vida cheia de dúvidas e incertezas, convivemos com a ilusão de que temos algo sob controle. Pois nossa Carolina me faz lembrar todos os dias que estamos aqui neste planeta sem garantias, sem saber nada, nem de onde viemos nem para onde vamos. Tudo pode mudar a qualquer segundo, mas o amor estampado em cada sorriso seu me faz ter certeza de que toda a incerteza vale a pena. E que venha o próximo desafio!

Mariana Reade é roteirista da TV Globo e diretora de documentários. Autora do livro “Mundo de Algodão” e do blog “Bebê Blogando”.

 

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