Há um movimento crescente de conscientização sobre a violência obstétrica no Brasil e muito se tem falado da importância da presença dos pais na primeira infância. Bia Siqueira e o marido, Guilherme Abrunhosa, vivendo na pele a mudança de rotina com a chegada de duas filhas, decidiram dirigir, com recursos próprios, o documentário Com Licença. O objetivo é sensibilizar o público para a importância da licença-maternidade, da presença dos pais na vida dos filhos e da divisão das responsabilidades domésticas entre homem e mulher em casa.
Investigar os dilemas diários da vida envolvendo maternidade e carreira, sob diversos pontos de vista, através do olhar de profissionais, mães, pais, empresas e organizações, é a intenção da dupla, que, apesar de ter lançado uma bem-sucedida campanha de crowdfunding, ainda precisa de mais patrocínio…
“Precisamos rever os modelos, os papéis, as leis. Quer um exemplo? Não ter medo de falar pro chefe que precisa sair mais cedo porque o filho está com febre. Isso é a vida, dentro e fora das empresas”, defende Bia.
Enquanto o filme não sai, peço emprestado ao casal um pouco desse olhar atento e inconformado. A seguir, um texto inédito redigido por Bia especialmente para os leitores do Projeto Cegonha. E não deixem de conferir o trailer do documentário, clicando neste link:
https://www.youtube.com/
E NO CONFESSIONÁRIO VIRTUAL…
VIDA DE GADO.
É DURO TER QUE CAMINHAR TANTO E DAR MUITO MAIS DO QUE RECEBER.
E TER QUE DEMONSTRAR SUA CORAGEM, À MARGEM DO QUE POSSA PARECER.
Algumas coisas não têm muita explicação.
O tema “mães que trabalham” sempre me revirou por dentro.
Sinto uma tristeza enorme quando vejo uma grávida, com seus oito ou nove meses, trabalhando em pé, horas a fio, visivelmente cansada, mas obrigada, de certa forma, a estar ali.
Outro dia vi a moça da padaria da esquina… Perguntei de quantas semanas ela estava. Trinta e oito.
Além de trabalhar o dia inteiro sentada numa banqueta sem encosto, aguenta o calor que vem da vitrine dos frangos assados rodando.
Só quem já chegou a 38 semanas vai entender o que estou falando.
Pra ter uma breve sensação (física) do que estou sentindo, basta colocar uma caneleira de 7kg em cada perna e passar o dia com elas. Uma mulher aumenta em média de 12 a 14 quilos o seu peso original na gravidez. Eu engordei 18 na segunda. Peguei os meses de verão no Rio de Janeiro com uma barriga imensa e muito pesada.
Eu caminhava a 5km/h e evitava ao máximo sair de casa, porque me sentia numa estufa, tive falta de ar e tonteira inúmeras vezes.
Sim, mulheres, somos fortes. Algumas nem sabem disso, mas somos.
Uma vez, grávida de uns sete meses da Maria, fui ao mercado e me sentei no Rei do Mate, lá dentro, pra tomar um suco.
Saiu uma moça lá de dentro, mais grávida que eu, varrendo o chão.
A gente se olhou. E eu nunca vou saber o que ela pensou.
Eu sei, muitas vezes as mulheres até querem trabalhar até o último dia de gravidez, mas sentada naquela banqueta no calor da vitrine dos frangos?
Não…
Quando trabalhei numa multinacional, entendi que um emprego formal não me daria aquilo que mais prezo: autonomia e tempo com meus (futuros) filhos. Entendi que lá dificilmente eu iria poder escolher isso.
Fiz desse tema uma grande pergunta pessoal e fui tentar entender um pouco isso tudo.
Hoje, depois de já ter escutado pessoas muito interessantes falando sobre o tema Maternidade e Carreira, não tenho resposta alguma, mas venho atraindo relatos interessantes, às vezes, desabafos.
Recebo mensagens de mulheres procurando advogado pra processar empresa, perguntas sobre como podem buscar algum novo caminho, confissões das que se sentem sozinhas, desesperadas pra voltar um pouco à vida normal de trabalho, mas não conseguem porque não há como voltar ao trabalho anterior com horários mais flexíveis.
É uma luta cruel essa que todas as famílias enfrentam… Tem que ter muita força. Muita disposição.
E amor só não basta.
Hoje, filmando uma família em que o pai é quem largou o emprego formal pra tomar conta das duas filhas gêmeas, escutei dele que “o mais pesado não é nem o Cuidar. O mais pesado é você ouvir dos outros que você virou babá…”.
Senti a mesma tristeza profunda de lá no começo, vendo a grávida trabalhando sem parar.
Desesperança… Foi o que eu senti.
Que sociedade cruel.
Que desvalorização do papel de Cuidador.
Que visão triste do que é ser Pai.
Que merda.
Todo dia, quando busco minha filha na escola, ela vem correndo lá de longe, me abraça e começa a falar pra quem quiser ouvir: “Minha mãe chegou, minha mãe chegou!”.
Sorrindo tanto, tão feliz!
Eu daria qualquer coisa pra que todas as mães e pais pudessem ter esse momento diariamente…
Algumas babás levam e buscam todos os dias, alguns voltam de condução. Sempre fico pensando “poxa, coitada dessa mãe que não pode estar nunca aqui…”. E sei que muitas têm empregos, em que, de fato, é praticamente impossível flexibilidade de horário.
Sei também que existem muitas mulheres em cargos de chefia, ironizando (em equipe) aquela funcionária que decidiu amamentar por mais tempo.
Dificultando a vida fértil de suas funcionárias.
Ligando constantemente pra mãe em licença-maternidade pra falar de trabalho.
Pedindo, como quem não quer nada, que ela volte uns 15 dias antes do fim da licença. (As confissões chegam com nome e sobrenome.)
Sim, tem muita mulher chefiando assim.
Eu, honestamente, acredito que essas mulheres sintam prazer em “dar o troco”, ou elas também não tiveram escolha e, portanto, cada uma que se vire, ou elas são diretamente atingidas na ferida, seja pela falta de filhos, falta de vontade de ter filhos, falta de vontade de estar com eles, incapacidade de se doar… A ferida pode ser grande…
Meu trabalho quase sempre me exige umas seis horas fora de casa aos sábados e, às vezes, aos domingos.
Meu marido também precisa usar os sábados e, muitas vezes, à tarde, minhas filhas estão com a babá no play.
Certamente, quem olha pensa: “Coitadinha dessas meninas, nunca estão com os pais…”.
É. A vida tem disso.
Uma amiga, quando engravidou, decidiu mudar o rumo das coisas: conseguiu ficar mais tempo em casa com o filho e ainda fez com que isso fosse a regra oficial na empresa dali pra frente. Voltou ao trabalho, tem um cargo importante, e abriu caminho para as futuras gestantes que passarão por ali.
Sim, a mudança começa em cada um de nós.
Não podemos jamais sentar e esperar que o chefe venha comunicar novidades melhores. Somos nós que temos que ir até eles e falar sobre nossas necessidades.
Eu sei, vai ter gente com medo até de demissão.
Mas mudanças são feitas assim: cortando na carne (como diria o Gui, meu marido).
Mudanças são feitas com mães como as fundadoras da Casa de Viver, em SP.
Fui lá, pessoalmente, só pra conhecer essa iniciativa tão corajosa.
Conversei com a Carina, que me contou todos os inúmeros sacrifícios pra erguer esse sonho.
Me contou tudo o que ela passou e que a fez sentir necessidade de um espaço onde ela possa trabalhar sem precisar largar o filho longe, na creche ou com a babá, em casa.
Um lugar onde ela pudesse Viver.
Hoje o sonho delas alimenta sonhos de outras mulheres, que alugam o espaço de trabalho na Casa de Viver e podem levar seus filhos e deixar com as cuidadoras, ficando ali, a dois passos deles, caso precisem.
Podem continuar amamentando em paz.
Podem até fazer a unha, marcar reuniões, escrever dissertação de mestrado.
Mudanças são feitas assim: com gente corajosa. Sonhadora. Inquieta.
A falta de empatia do ser humano me mata.
Todo dia.
Não ser capaz de perceber o estado de graça de uma gestante.
Não ser capaz de compreender a necessidade de dormir, gestar, de levar ao médico, de ficar perto quando tem febre…
Isso é negar a condição de ser humano.
Negar suas origens.
Negar que teve pai e mãe.
Comecemos por nós, exercendo na nossa vida aquilo que acreditamos e desejamos pro mundo.
Cortemos na carne.
Que enfrentemos o medo e possamos fazer diferente.
Ainda que o mundo não tenha empatia.
Ainda que riam do pai que virou babá.
Ainda que achem tudo isso aqui uma baboseira.
Ainda assim: dane-se.
Façamos cada um(a) a sua parte.
“O inconformismo das pessoas diante dos que estão em processo de rompimento com conceitos e propostas do passado também decorre do medo e desconforto profundos produzidos pela identificação com essa postura.”
(A Alma Imoral)
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